(O texto abaixo contém spoilers, pois foi preparado para o debate do livro no Fórum Entre Pontos e Vírgulas)
A Morte de Ivan Ilitch, novela publicada por Tolstói em 1886, é um desses textos atemporais, impecáveis e únicos. O próprio título anuncia não só o que há de particular, trata-se de Ivan Ilitch, mas também o tema que é universal e necessário: a morte.
O aspecto que eu mais gostei nessa minha releitura é a profusão de contrastes que Tostói nos traz em uma narrativa tão breve, mas, ao mesmo tempo, com um final tão denso... (E como diz o Paulo Rónai no posfácio dessa edição da 34: que descrição do momento da morte!).
A narrativa nos coloca diante de uma dialética entre o particular e o universal e entre a vida e a morte. Depois de uma descrição seca de uma vida que eu chamaria de opaca (sem vida, cor, sobressaltos), somos arrebatados por uma morte extremamente vívida! E aí é que passamos do particular (do "tipo" que o autor está descrevendo e podemos nos identificar parcialmente ou não) ao universal: todos experimentamos a morte, a proximidade e a necessidade da morte - o que, inevitavelmente, nos faz rever nossas escolhas passadas e nossas finalidades na vida.
Nas minhas reflexões para além do texto fiquei também pensando que tudo contribui para a angústia crescente (do leitor) que se depara com o vazio cada vez maior (e mais insosso) da vida de Ivan Ilitch, para, em seguida, se sentir imerso no fato de como a sua morte (que ele experimenta no momento em que tem a certeza da morte e não apenas na consumação desta!) se torna o um evento radical, solitário e atemorizante. [O que eu quero dizer é que há uma forte união entre o conteúdo/texto e o estilo da escrita que nos faz experimentar esse contraste fortíssimo!].
A narrativa nos coloca diante de uma dialética entre o particular e o universal e entre a vida e a morte. Depois de uma descrição seca de uma vida que eu chamaria de opaca (sem vida, cor, sobressaltos), somos arrebatados por uma morte extremamente vívida! E aí é que passamos do particular (do "tipo" que o autor está descrevendo e podemos nos identificar parcialmente ou não) ao universal: todos experimentamos a morte, a proximidade e a necessidade da morte - o que, inevitavelmente, nos faz rever nossas escolhas passadas e nossas finalidades na vida.
Nas minhas reflexões para além do texto fiquei também pensando que tudo contribui para a angústia crescente (do leitor) que se depara com o vazio cada vez maior (e mais insosso) da vida de Ivan Ilitch, para, em seguida, se sentir imerso no fato de como a sua morte (que ele experimenta no momento em que tem a certeza da morte e não apenas na consumação desta!) se torna o um evento radical, solitário e atemorizante. [O que eu quero dizer é que há uma forte união entre o conteúdo/texto e o estilo da escrita que nos faz experimentar esse contraste fortíssimo!].
Ivan Ilitch é o protótipo do burguês burocrata. Não tem grandes paixões ou ideais na vida; seus únicos motores são o trabalho (o que envolve a busca de promoções e uma segurança financeira apenas, e não algum tipo de realização pessoal) e sua parca vida social. Sua vida íntima é também marcada pela ausência de fortes desejos e sentimentos: o seu casamento se deu por conveniência social e viveu quase a vida toda uma relação superficial com a esposa e os filhos. Prazer? Apenas no jogo; e nada avassalador, pelo que percebemos.
Como o trecho abaixo ilustra de forma brilhante: a vida toda de Ivan Ilitch é permeada por um cotidiano impessoal e racionalizado, na qual há pouco ou nenhum lugar para afetos e relacionamentos mais profundos e radicais.
A Morte de Ivan Ilitch; editora 34, pág. 33 |
Os momentos de decepção e tristeza (se é que há algum sentimento mais forte) ficam por conta dos reveses ligados à ascensão profissional e, por conseguinte, à manutenção da sua reputação social.
Continuando com os contrastes: o tratamento demasiado impessoal do médico traz à tona para Ivan Ilitch uma revolta que ele nunca sentiu quando estava "do outro lado"/da burocracia. O tipo de tratamento superficial e distante que recebe do médico, da sua esposa, da filha; tudo isso só reforça a falsidade e a pequenez que ele agora vê na sua antiga vida.
A todo momento o desespero de Ivan Ilitch só vai aumentando e não vem tanto da dor, mas da experiência da morte, do fim. Tentando reconstituir seu passado vê poucos momentos (a infância e/ou na faculdade talvez) realmente autênticos.
Outro elemento de contraste é o criado G. que representa a simplicidade da vida (e a tranquilidade da alma) que ele nunca teve e não tem agora diante da morte, do fim de tudo; um "tudo" que ele não consegue ver sentido algum.
Confesso que me deu muito prazer reler essa novela ao mesmo tempo em que leio pela primeira vez outra obra magistral de Tolstói: Anna Kariênina! E isso porque pude observar a mudança grande na escrita e a complexidade deste grande escritor e pensador. Se em Anna eu me envolvo completamente no enredo a partir da vida interior e da riqueza de cada personagem com suas dúvidas, hesitações, escolhas e emoções; em Ivan eu me assusto com o quanto o homem (todos nós) pode despir-se de sua humanidade e transformar a própria vida em mero seguimento de procedimentos burocrático-sociais (e perder-se no meio disso)*.
O que posso dizer é que a morte extremamente vívida de Ivan Ilitch é inesquecível: sei que retornarei à ela não como algo distante, mas como algo muito próximo sempre que a rotinização dos procedimentos cotidianos me separar daquilo que me faz humana e me despir de vida, de propósito, de finalidade...
*Sei que a comparação é meio descabida: um romance de proporções enormes como Anna e uma novela. Mas o ponto é a mudança na forma do texto, no estilo. É notável e interessantíssimo acompanhar essa transformação da escrita (que tem muito que ver com os propósitos e com a mudança mesmo de Tolstói: a morte se torna cada vez mais um tema e uma realidade que o atormentava muito. Não apenas a morte em si, mas o fato de que ele não conseguia implementar em sua vida pessoal a mudança de vida que ele tanto desejava - a saber, uma vida mais simples, mais próxima da natureza e despida das conveniências sociais!).