domingo, 20 de abril de 2014

Do meu amor por Gabo e de alguns demônios

"Ao amanhecer de quinta-feira pararam os cheiros, perdeu-se o sentido das distâncias. A noção do tempo (...) desapareceu por completo. Então não houve quinta-feira"
(Do conto Isabel vendo chover em Macondo)


Desde a triste notícia da morte do Gabo há três dias várias imagens, sentimentos e fantasmas povoam minha mente… Mesmo sabendo que no meu coração ele viverá para sempre, não pude deixar de me sentir tão pequena e só como eu era antes de conhecê-lo... O tempo parou e eu voltei a encontrar não apenas meus fantasmas, mas a dor de não poder tê-los ao meu lado.

Cresci admirando os títulos e capas dos livros de Gabriel García Marquez na estante dos meus pais. Lembro que O outono do patriarca era um dos que mais me intrigava; pelo título e pela capa. Meus pais e seus amigos falavam de vários escritores latino-americanos, mas uma coisa que ficou no meu imaginário era como o nome Gabriel García Marquez era evocado em alguns momentos como se ele fosse parte da família; com intimidade, reconhecimento e afeição. Gabo era, desde então, um ser mitológico para mim: sua obra ainda não tinha me tocado, mas a sua figura e o que ele representava para tantos já fazia parte da minha história. Lembro vagamente de ter começado a leitura de O outono e de Crônica de uma morte anunciada (outro título que me intrigava) e não ter concluído.
  
Com uns 15 ou 16 anos, finalmente conheci a escrita do Gabo: li Cem anos de solidão e foi como uma revolução na minha vida. Como leitora eu descobria novas possibilidades da escrita até então completamente desconhecidas. Como era possível inventar com a palavra um mundo tão real e irreal ao mesmo  tempo? E com personagens tão incríveis que eu sentia que conhecia antes mesmo de ler sobre? Como pessoa eu encontrava alguém que traduzia de uma forma tão bela e poética sentimentos que eu não sabia nomear e uma sensação de pertencimento única se formava dentro de mim. E, principalmente, com Cem anos a realidade de uma literatura latino-americana se tornava incontestável, tanto quanto a vontade de que com a minha vida eu pudesse compreender melhor e também falar ou fazer algo por essa minha América Latina querida. Escolhi as ciências sociais e, no segundo semestre da faculdade eu já sabia que não poderia fazer mais nada da vida…eu tinha um lugar no mundo e isso é algo que nos confere um tipo único de solidão e, ao mesmo tempo, aquela busca contínua que nos aprisiona e que, para mim, só Gabo sabia traduzir e aplacar.

Antes disso, eu era uma pessoa entre dois mundos: minha identidade se dividia entre a origem da minha mãe, hondureña, e a do meu pai, brasileiro, e o amor de ambos pela história, literatura e música latino-americana. Quando eu era pequena, vivia entre o Brasil e Honduras e, em um certo sentido, os dois países representavam realidades tão opostas, que era difícil conciliá-las na minha cabeça e no meu coração. De um lado o espanhol, a família numerosa, religiosa e festeira, a desigualdade social extrema e um país de proporções geográficas pequenas, mas de grandes caudilhos e absurdos sociais. De outro o Brasil, bem mais modernizado, com a família pequena e silenciosa do meu pai e com uma história tão diferente - ainda que tão parecida em outros aspectos -.
O que mais diferenciava o Brasil de Honduras além das proporções, da ausência de minha imensa família e da comida (aqui não tínhamos tortia e o café da manhã era, portanto, sempre mais chato), era a língua… O português nos diferenciava não só de Honduras, mas dessa identidade coletiva que era a de todos os outros países latinos. Os amigos chilenos, argentinos, nicaraguenses e do Panamá: todos falavam espanhol! Nós éramos, na minha cabeça quando pequena, os diferentes e o português era uma língua que separava; e o Brasil esse país imenso e belo que todos amavam, porém distante, uma distância que o tornava quase irreal.

Eu fui alfabetizada em espanhol para, em seguida, voltar ao Brasil. Apesar de falar bem o espanhol ("sem sotaque, nem parece que você é brasileira!"), lembro que meus primos riam de mim quando eu falava democracia com o "acento" errado do português e também me zoavam dizendo que eu inventava palavras. Enquanto isso, por aqui, eu vivia sendo criticada nas provas e textos pois escrevia felis com "s", entre outros absurdos lingüísticos e existenciais.

Eu pensava em espanhol quando ia para Honduras e esquecia completamente o português (ao menos era assim que eu sentia); mas, quando voltava para cá eu sentia que minha Honduras, bem como a nossa latinidade, ficavam imensamente mais distantes por conta da língua e da inexistência de uma afirmação histórico-política de igualdade entre nós: quase ninguém que eu conhecia sabia onde era Honduras! Minha mãe ser hondureña era sempre motivo de caras estranhas, risinhos e até xingamentos (sim, adolescentes são seres maldosos! :).

O maior dos "absurdos" para mim era como podíamos ser tão próximos e tão distantes de Honduras, bem como da América Latina como um todo em certo sentido… O Brasil se bastava a si mesmo, mas eu e minha família não. Estávamos sempre com saudade de alguém ou de algo, real e imaginado. Desde muito cedo eu conhecia o que era nostalgia, ainda que não soubesse escrever corretamente a palavra em nenhuma língua. 

Quando eu tinha 8 anos meus pais nos mandaram para Honduras para morar com meus avós (eu e minha irmã dois anos mais velha). Eles estavam se separando aqui e acharam que, estando lá, experimentaríamos menos essa dor. A ironia é que meus avós hondureños se separaram enquanto estávamos morando com eles! :(
A casa dos meus avós era imensa (na minha mente, claro); era o verdadeiro centro do mundo familiar, o lugar de encontro semanal, de resolução dos problemas mais graves e era também o contexto que acolhia rejeitados como eu e minha irmã. Também frequentávamos bastante as casas das minhas bisavós, que eram como o paraíso para mim: muita coisa podia acontecer nestes lugares fantásticos e era com um imenso pesar que eu ia embora de lá. A casa da mãe da minha avó, minha bisavó Mercedes (da qual eu herdei meu nome), tinha um jardim interno e nela moravam várias tias mais velhas e solteiras que nos enchiam de doces e histórias; muitas delas eram de familiares e cheias de segredos e revelações - era melhor que novela! rs. Outra coisa que lembro com gosto era como nós encontrávamos a cada dia uma passagem secreta escondida, um recanto perdido da casa e o mundo de objetos velhos incríveis que minha bisavó guardava. (Minha avó também faz isso até hoje: na casa dela podemos encontrar objetos com mais de 30/40 anos!). 

Minha outra bisavó, abuelita Moncha, tinha uma casa igualmente surpreendente, pois ela guardava muitas coisas em vidros espalhados em prateleiras pelos cômodos da casa toda - o que era um tanto assustador, confesso. Além disso, ela tinha uma cozinha incrível que era meio que aberta para o quintal e cozinhava o dia inteiro em um forno de barro enquanto nós nos sentávamos e comíamos em bancos de madeira com três pés. Outra lembrança forte que tenho da minha bisavó Moncha é que ela viveu até quase os 100 anos e fazia TUDO sozinha. 

Quando eu tinha 15 anos fui para Honduras visitar minha mãe que estava morando lá. No dia seguinte estávamos na casa da minha bisavó Moncha. Ela estava doente, muito mal mesmo e não podíamos fazer mais nada: ela queria morrer em casa. Minha mãe, que é médica, ficava a maior parte do tempo com ela (quando não estava brigando com todo mundo na micro sala ao lado porque era preciso fazer algo!). No meio da noite, saí com minha mãe e minha avó para buscar comida; demoramos uns 15 minutos. Quando voltamos minha bisa estava morta. Creio que meu maior choque foi com o fato de ser tão repentino (eu não "sabia" exatamente que estávamos ali esperando a sua morte, afinal) e com o fato de que ela parecia tão menor e mais serena quando morta. No dia seguinte meu avô chorou alto feito criança durante todo o enterro como eu nunca vira; ele era o nosso coronel, sempre impassível, forte e duro, e estava ali se despedindo de sua mãe completamente destroçado! Essas duas imagens ficaram durante muito tempo comigo… 

A morte de Úrsula Iguarán em Cem anos de solidão é uma das passagens literárias mais fortes que guardo na memória (não vou contar tudo, pois alguém pode estar lendo este texto sem ter lido o livro). Úrsula é até hoje uma das minhas personagens preferidas do livro: sua força, determinação, o modo como cuidava de toda a família e como suportou (e até apoiou em certo sentido) todas as ideias loucas de José Arcádio Buendía e as guerras do coronel Aureliano Buendía (outro dos meus personagens preferidos ;)… Úrsula sintetizava todas as grandes mulheres da minha família: minhas bisavós, minha avó e minha mãe. Além disso, Úrsula, Amaranta, Rebecca, Pilar (e até mesmo a Fernanda del Carpio!) eram todas mulheres muito latino-americanas. [E o que dizer de Macondo? Macondo era a minha casa, a fusão das casas das minhas avós e bisas, de Honduras e da América Latina... Macondo era aqui e eu nunca mais deixei de me sentir próxima dessa cidade mítica, solitária e maravilhosa].

Eu comecei a ser devoradora de livros quando pequena; por volta dos 10 anos, quando voltei para o Brasil, lembro de ler tudo que me caía nas mãos (especialmente suspenses!) e com 12 lembro de frequentar a biblioteca do Campo São Bento toda semana. A literatura foi fundamental para mim nesse período de construção da minha identidade por vários motivos: me ajudou a lidar com a distância e a falta que sentia da minha família, me abriu a mente para a enormidade do mundo, me ajudou a superar minhas próprias dores muito ligadas nessa época à separação dos meus pais e a impotência que eu sentia em lidar com isso... e até me ajudou a gostar do português. ;)

Mas foi com Gabo, e com Cem anos, que eu pude vivenciar e perceber a grandiosidade dessa fusão entre vida e literatura. Gabo falava de um modo tão belo de algo que era tão real e, ao mesmo tempo tão absurdo, tão doloroso… Eram sentimentos que eu entendia, tinha vivenciado, que falavam de mim e da minha história também. E eram, agora, parte de algo que eu compreendia como um "nós", algo que me relacionava de forma definitiva a minha identidade latino-americana; que eu antes não enxergava com essa dimensão maior.

Os desmandos e absurdos cometidos pelos homens no poder, a inutilidade das guerras, a ausência de diferenças ideológicas no plano da ação/do poder e a invisibilidade dos trabalhadores: tudo isso também estava lá e nos unia! A dialética que opunha Brasil e Honduras no meu imaginário se resolvia na reconstrução da história social da América Latina que eu agora queria estudar. 

O contato com a obra de Gabo (re)significou a minha história e minhas escolhas. Por isso este texto não poderia deixar de ser tão pessoal. Por mais que o grande escritor de Aracataca tenha vários outros lugares na minha experiência de leitora, hoje, com o coração apertado, lembro de como ele foi fundamental no momento que a morte se tornou presente na minha vida,  no momento que a solidão inescapável que todos nós vivemos se fez mais real, mas também na construção do ideal que me permitiu acreditar: o de uma América Latina mais justa e igual.

Gabo nos deixou na última quinta-feira 17 de abril de 2014. Entretanto, continuará vivendo para sempre no coração de seus leitores por todo o mundo.

Hasta luego, maestro! Y gracias por todo

domingo, 6 de abril de 2014

Quem sabe um dia de Lauren Grahan

Quem sabe um dia, o primeiro livro da atriz Lauren Graham (a nossa eterna Lorelai de Gilmore Girls! ;), é um livro leve e divertido.

Acompanhamos a trajetória de Franny Banks em Nova York no final do prazo de três anos que ela mesma se impôs para se tornar uma atriz em ascensão (na Broadway). Restam seis meses para lutar pelo grande desejo de sua vida, mas até agora ela conseguiu apenas fazer um comercial de casaco de Natal, trabalhar como garçonete e fazer um curso de teatro famoso. No mais, divide um apartamento no Brooklin com sua grande amiga Jane, que trabalha como assistente de produção em um filme, e Dan, que aspira ser roteirista de filmes de ficção científica. Tudo gira então em torno da indústria da TV e do cinema e do quanto é difícil batalhar por uma entrada neste mundo. Franny aposta suas fichas no curso de teatro que está fazendo e que termina com uma grande apresentação na qual comparecem recrutadores/ "olheiros" das grandes agências de atores de Nova York.

Como nas boas comédias românticas do cinema, os melhores momentos da trama se passam nas peripécias pelas quais Franny passa em sua caminhada e na convivência e nas conversas da personagem principal com seus colegas de apartamento. ;)

Franny tem 26 anos; perdeu a mãe quando era pequena e foi criada pelo pai, um professor de literatura que vive em outra cidade e quase só consegue conversar com a filha pelo telefone. Um dos pontos altos do livro para mim foi justamente a relação de Franny com seu pai e as conversas dos dois. Na maior parte das vezes o pai de Franny, não conseguindo falar com ela, deixa recados na secretária eletrônica; mensagens que, aliás, pautam a passagem do tempo e conferem uma boa dinâmica à história. Pena só que a autora não segura o ritmo (neste e em outros pontos) até o final.

A relação da personagem com a secretária eletrônica, aliás, foi uma das boas ideias de Lauren Grahan. O livro se passa em 1995 e Franny não tem um telefone celular; a secretária é seu meio de relacionamento com o mundo e, na maior parte do livro, o uso deste recurso confere dinamismo e graça ao enredo. Franny está sempre esperando um recado de alguém da mesma forma que parece estar esperando ser aprovada (empregada) por alguém como atriz, como mulher, como pessoa...

Apesar de ser o mote central, achei que a insegurança em relação à sua atuação não é tão bem  explorada no livro. Ao mesmo tempo em que acompanhamos vários momentos de descoberta da personagem de seu potencial como atriz, a autora explora a insegurança de Franny com relação ao seu corpo, sua beleza, seu cabelo… Embora estas questões sejam elaboradas também com relação à insegurança geral da personagem sobre si mesma de forma interessante em certas partes, achei que foi um pouco clichê demais e forçada a obsessão de Franny com dietas (confesso que implico com o excesso dessa temática...).
Minha impressão geral foi a de que o livro é divertido e interessante, mas ganharia muito se fosse mais enxuto em várias partes do enredo e também na construção da personagem.

Assim, ao mesmo tempo que gostei do início do desenvolvimento da personagem com as várias tiradas através da secretária eletrônica e das conversas de Franny com Dan, duas coisas me incomodaram mais do meio para o fim do livro. A primeira é que Franny não parecia ter 26 anos! Em vários momentos, senti como se ela fosse uma adolescente e como se houvesse um certo descompasso entre uma das características da personagem (a insistência em batalhar pelo que queria) e as demais… (Para mim a obsessão com o seu peso não "colou", sabem como?). Além disso, faltou sutileza a autora em alguns momentos: estendeu demais certas passagens e explicou muito para seu leitor outras ótimas ideias que teve (como a do nome da personagem dada por sua mãe que adorava Salinger).

Enfim, gostei do tom leve e divertido da leitura, especialmente no início e no finalzinho, e de alguns insights de Lauren Grahan, mas acho que o livro ganharia muito se a autora se afastasse de alguns clichês e tornasse mais dinâmico também o "miolo" da trama.


OBS: Ganhei "Quem sabe um dia" de cortesia da Editora Record no evento Piquenique da Galera Record. ;)